O primeiro desfile carnavalesco

Bruno Pessa
19 min readMar 15, 2018

Minha conexão com os desfiles de carnaval é paixão antiga. Não me lembro desde que idade eu moleque brigava com o sono pra assistir às transmissões da TV ao vivo e fatalmente gravava os desfiles da madrugada alta (videocassete, usei muito). Décadas depois, ainda me lembro de letras marcantes de enredos dos anos 1980 e 90.

Vindo morar em São Paulo, me aproximei dos dois principais pólos de escolas de samba do país, nas duas maiores cidades do país. Tive a oportunidade de ir para a arquibancada do Anhembi num desses carnavais do grupo especial, provei do gosto de fazer parte da grande festa bem de perto, em 2010. Foi ótimo, mas ficou o desejo de não estar apenas próximo: estar ali dentro, no meio da folia. Quem sabe um dia?

25 de fevereiro de 2017.

Dormi até acordar, porque, além de ser muito bom, naquele sábado era bastante necessário. Vinha dia longo pela frente, madrugada a encarar no pique. Então bora poupar energia. Não saí nem pra comer e aproveitei o resto do almoço na janta, quem nunca? Parte da sala estava tomada pela fantasia. Ou melhor, as várias partes da fantasia.

A fantasia de Logunedé no dia da apresentação dos pilotos de fantasias

Precisava conferir se estava tudo certo pra de noite. E me montar, claro, porque marinheiro de primeira viagem, solitário no camarim, não dava pra arriscar em cima da hora. Calmamente me vesti, me compus. Os adereços de braço, fáceis. O colete e o de ombro requerem um esforço pra fechar nas costas, mas beleza. O de maior envergadura , ou melhor dizendo diâmetro, pela circularidade, é a saiona. Sim, saia rodada, acho que só perdia pra ala das baianas. Era unissex a fantasia de Logunedé, nosso nome de ala dentro do enredo.

Bem, a saia dentro de mim, ou melhor dizendo, em volta, não cabia em nenhum dos (dois) corredores do apê, e olha que ele não é apertado. Então nada de dar bobeira, tiro e só recoloco na hora de ir pros finalmentes. O chapéu também é chatinho. Tem que apertar bem pra não cair no meio da evolução (?), mas se apertar demais e incomodar desde o início, vira um tormento. E tem os cabelinho, que fazem parte do penacho do adereço mais alto do corpo, porém aptos pra cair sob qualquer movimento. Me disseram pra espalhar spray de laquê nos cabelinho, ok... mas cê acha que um homem heterossexual que mora sozinho há anos tem laquê em casa?

Foi aí que botei uma vizinha amiga na parada, emprestadora-de-spray-fixador-pra-folião-de-primeira-viagem. Pronto, arresolvido! Fiquei na concentração doméstica até a hora de me montar pra valer, de noite. Passei na vizinha pra devolver o spray e ela ganhou uma contemplação inédita, em primeira mão, de um componente completinho de uma escola de samba de ponta. Troca justa, não?

Afinal, 25 de fevereiro de 2017 era o segundo dia de desfiles do grupo especial da Liga das Escolas de Samba de São Paulo naquele ano. E dentro de poucas horas eu seria um dos milhares de integrantes da escola de samba Vai Vai no Sambódromo do Anhembi.

Chegar a essa almejada condição foi um processo de longos meses. Não que o passar do tempo demore muito hoje em dia, como você contemporâneo do século 21 há de convir. É que a ansiedade é grande, desde que você garante seu lugar no desfile até o esperadíssimo momento do desfile. Não me lembro exatamente quando, em meados de 2016, decidi que dessa vez ia até o fim e comecei a furunfar por onde cumpriria as etapas necessárias nessa caminhada. Sim, são vários passos - se vc não tem qualquer vínculo atual com qualquer escola, como eu.

A primeira coisa que eu precisava era escolher e comprar uma fantasia, que seria meu passaporte pra fazer parte do desfile. Nessa altura da vida eu inda não sabia por qual escola sair, taha vendo as possibilidades mais plausíveis e atraentes. Nos sites as escolas exibem suas opções de fantasias, aí contatando os responsáveis você descobre os preços e condições de pagamento. O preço eu levava em conta, mas mais do que isso, a facilidade e disponibilidade pra ir aos ensaios, resolver o que fosse necessário na quadra da escola, essas coisas. Poucas cotações mostraram que a Vai Vai tinha fantasias bem mais caras que escolas menores (até seis vezes cipá!). Mas sua localização central, conhecida, chegável por múltiplos lados, sua força, tradição e certeza de disputa pelo título falaram mais alto. Eu não sabia se faria aquilo de novo, então melhor não se arrepender por não ter ido numa grande quando tive chance.

O anúncio da fantasia que eu acabei escolhendo

A escolha da fantasia teve a ver com a possibilidade de pagamento em três parcelas, disponibilidade no site da agremiação, estética agradável e fuga de algo “que me desse mais trabalho do que prazer”, sendo pesada, difícil de montar e delicada demais. Lembremo-nos de que eu nunca lidara com esses trambolhos antes. Bem, já disse acima que algumas dificuldades tive, mas tudo contornável (cheguei inteirinho até o momento glorioso de entrar na avenida!). Do momento que decidi a fantasia até tê-la em mãos, foram uns 4 meses. Encomenda de longo prazo e expectativa. Só que folião que se preze, de escola que disputa o Carnaval, não deve simplesmente esperar o Carnaval chegar, pegar a fantasia e só se juntar aos colegas da escola quando as alas estiverem se alinhando na concentração (embora tenha um ou outro que lamentavelmente aja assim). É preciso ensaiar, treinar repetidamente tudo que é esperado de você enquanto estiver sendo avaliado pelo corpo de jurados com olhos na pista e caneta na mão. Afinal, a diversão de quem disputa o Carnaval é disciplinada, medida em passos pensados, movimentos livres dentro do que existe de coreografia pra ser respeitada. É um jeito de pular carnaval também, mas respeitando a evolução, a harmonia (perfeito entrosamento entre o canto e a dança) e o enredo da escola. Passista com comportamento profissional, praticamente.

Na Vai Vai percebi que isso variava conforme as alas, que é como chamamos os grupos de passistas que vão no chão, tematizados em fantasias iguais dentro dela (representando um personagem, cenário ou situação). A minha ala, tipicamente comercial, tinha exigências moderadas — cantar o enredo, fazer alguns movimentos, estar alinhado e evoluir no ritmo dos pares, que vão do lado e à frente. Basicamente, não atrapalhar o geral. Além das alas ‘comerciais básicas’, tinham as alas da comunidade, com o pessoal mais raiz da escola, e as coreografadas, em que os componentes dançavam passos e movimentos específicos pra cada parte da música (coisa bonita e bacana de ver). Percebi que um desconhecido, como eu, necessariamente desfilava a primeira vez numa comercial. Fazendo tudo certinho, já tinha a possibilidade de migrar para uma comunitária no ano seguinte, ou no outro, tendo aí a vantagem de não precisar comprar a fantasia (ou pagando bem menos do que paguei). Porém, ‘ser comunidade’ implica ter mais obrigações a cumprir, como presença obrigatória em bem mais ensaios do que os foliões pagantes. Não era o meu desejo.

Fotos minhas de um domingão da Vai Vai

Uma vez paga a fantasia, você já era parte da ala, sendo esperado nos primeiros ensaios semanais. A Vai Vai tradicionalmente ensaia domingo à noite, nas ruas e calçadas do perímetro em torno de sua sede, na Bela Vista/Bixiga. A sede não é grande, não dá pra ‘montar’ as alas e fazer o ensaio internamente. Então mesmo com chuva torrencial a gente se molha, o que não é problema, porque todo mundo se contagia, ainda mais quem tá no pique do ensaio, simulando, em maior ou menor escala, o esperado dia do desfile desde sempre. Em alguns domingos demos uma volta maior, para além da área cercada (onde a escola coloca guaritas e cobra os ingressos dos visitantes) - que parece uma quermesse, com várias barracas de comes e bebes -, de forma que conseguimos evoluir num maior espaço e deu pra ter uma noção melhor da escola ‘esticada’. Em determinado momento do final do ano, também se ensaiava às quintas-feiras. Em janeiro, se não me engano, aumentava a carga: terça, quinta e domingo. Fora os ensaios técnicos, dois, no sambódromo. A reta final é meio pauleira mesmo.

Parte da galerinha amiga que formamos na Curt Samba

Acabei demorando um pouco pra me integrar ao grupo da Ala Curt Samba não por falha minha, mas porque a coordenadora responsável por me incluir no grupo de WhatsApp demorou/esqueceu/deixou de me adicionar nas primeiras semanas. Ok, não me prejudicou, eu tava bem afim de fazer tudo certinho, não me omitir. Depois de ter minha carteirinha passe livre de acesso aos ensaios, e a camiseta da ala, outro item que eu deveria portar até o último dos ensaios era uma pequena raquete azul, de plástico, que simularia o espelho da fantasia que, durante o desfile, levaríamos na mão direita e faríamos algumas movimentações específicas dentro do enredo. Uma das líderes entre os componentes da ala providenciou várias raquetes, entre as quais a minha. Percebi um companheirismo e um coleguismo bacana entre a maioria do pessoal da ala, eu que desconhecia todos. Claro que havia grandes amigos, gente se dando bem, gente não se misturando e gente tretando, afinal…. são seres humanos trazendo o que já conhecemos de melhor e pior. O relacionamento com o chefe de ala, que em determinados momentos foi rígido e frio, não era saudável da parte de vários integrantes. Mas tudo se saiu bem, tive uma interação tranquila com os mais chegados, nada que se reclamar.

Desde que tive contato com a música do samba-enredo, me esforcei pra decorar, o que gradualmente passou de trechos e se estendeu a toda ela (copiei, imprimi pra afixar em casa, cantarolava no banheiro, enquanto caminhava, dirigia,…). Era uma letra difícil, repleta de termos do candomblé, palavras originárias de dialetos africanos, de um universo desconhecido (ela está na íntegra mais abaixo). Felizmente os sambas são canções breves, de 1 a 2 minutos, que durante uma apresentação de mais de 60 na avenida são repetidos a esmo (e nos ensaios, nem se fala). E também o treino e a repetição ajudam a memória a tornar tudo mei que natural, mei espontâneo. Em janeiro eu já tirava de letra, não somente a letra, mas os poucos movimentos exigidos aos membros da nossa ala em determinados momentos da música. Teve um domingo que deu para levar a família para conhecer a escola, ver um ensaio pela primeira vez, curtimos muito.

O primeiro ensaio técnico no Anhembi foi bem esperado, o primeiro gostinho de sentir o palco do grande dia. Durante cerca de um mês, um mês e meio, todas as escolas dos grupos especial e de acesso têm a oportunidade de ensaiar no sambódromo, para poderem simular a entrada de todos os componentes e seu tempo de evolução no “campo de jogo”, onde acontecerá a grande decisão. E as arquibancadas ficam abertas, sem cobranças de ingressos, nessas sextas, sábados e domingos. Em dias de ensaios de agremiações muito populares, como a Vai Vai, tem torcida, povo vibrando junto, é um perfeito esquenta pro carnaval. Impressiona também como o contexto dos desfiles mobiliza bastante gente, pela multidão que encontramos no sambódromo, nos arredores, o trânsito muvucado (fenômenos bem paulistanos…). Tanto que tanto pra ir aos ensaios técnicos quanto para me deslocar para os desfiles abdiquei do carro próprio, do transporte público e fui de Uber. E quando pedi o Uber Pool acabei dividindo o carro com mais pessoas indo ou voltando do mesmo carnaval.

Tô aí no meio da galera da ala durante um dos ensaios técnicos!

A fantasia ficou pronta quase em cima da hora, dias antes apenas. É organizado, só que tem muita correria e última hora nesse trabalho de preparação, como eu vi na confecção e entrega das roupas e adereços da ala. Fui buscar na casa de uma das coordenadoras, na Zona Norte, e lá vi um monte de roupa, adereços, sapatos, tecidos e ajustes finais. Embora eu tivesse informado meu número de calçado, o que foi feito na mesma numeração acabou ficando grande. De modo que precisei rechear os interstícios com bolotas de algodão pra eles não se desprenderem dos meus pés nas primeiras caminhadas. Além de calçados, calça e colete, o traje era complementado por uma saia sobreposta à calça, outra menor abaixo do pescoço (existe saia acima da cintura?), adereços de mãos e braços, e chapéu. Os adereços de mãos e braços eram dois braceletes, uma pulseira com arco e flecha afixados por cima, como se estivessem presos na mão esquerda, e o espelho, sem fixação em nenhuma parte do corpo, que seguraríamos na mão direita, como eu disse quando falei dos ensaios. Eram tantos ‘penduricalhos’ que no dia de pegar tudo acabei esquecendo e me esqueceram de entregar o espelho. Sorte que combinamos de eu retirá-lo na quadra, num dos últimos ensaios domésticos antes do desfile, e não precisei passar pelo estresse de ter que correr atrás disso na última hora.

É hora de voltarmos a 25/2/17 então. Como já disse, fui de Uber. Só que não fui diretamente ao palco do desfile, fui pra quadra da Vai Vai. Além de ser um trajeto bem mais curto, evitando o estresse do trânsito em torno do Anhembi e possíveis atrasos geradores de tensão, as escolas disponibilizam aos seus foliões transporte gratuito entre suas sedes e o sambódromo, e depois do sambódromo para a sede, no dia do desfile. São ônibus do transporte coletivo municipal, cedidos (ou seriam alugados?) para a Liga das Escolas de Samba. Engraçado é que, fantasiado da cabeça aos pés, não tem como não chamar a atenção do porteiro do prédio, do motorista do Uber, das pessoas na rua onde o Uber passa, e mesmo das que integram e circulam pelo carnaval. Até porque nosso Logunedé tava lindo, um luxo em amarelo e azul. Ao chegar à Vai Vai, com boa antecedência, fiquei esperando os busões saírem, com os demais colegas de ala que optaram por ir dali. Claro que quem quisesse poderia ir diretamente ao espaço da concentração, vizinho do sambódromo, embora isso não fosse muito recomendado. Outro ponto de encontro, não muito longe do Anhembi, foi a casa da coordenadora onde peguei a fantasia. Mas até geograficamente para mim a quadra da Vai Vai era mais perto. Engraçado também, que, uma vez dentro da agremiação bexiguense, seus componentes se referem a ela no masculino, “o Vai Vai”. Por quê “o”, se é “a” escola, “a” agremiação? Será do nome oficial e completo dela, que é Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Vai-Vai? (pesquisando na internet, há uma referência dizendo que a escola de samba começou como cordão, bloco, grupo de carnaval, todos termos no masculino). De qualquer forma me soa estranho chamar no masculino, então continuo preferindo o oposto, como uso para as demais escolas.

Uma fantasia com saião, chapéuzão e adereços que te aumentam sobremaneira a envergadura requer cuidado constante no transporte, enquanto você passa por espaços estreitos, como entrando e saindo de veículos, passando por corredores, escadas, salas e portas. Então isso me preocupou até o momento de entrar na avenida. E não é pouco tempo entre descer do ônibus na concentração até pisar no sambódromo, hein! No caso paulistano, a vizinhança entre o sambódromo e o pavilhão de exposições do Anhembi, com um estacionamento gigante, e os dois fazendo parte do mesmo complexo permitem que os foliões se concentrem em áreas do estacionamento e do pavilhão. É interessante que essa concentração não é aleatória, bagunçada. Da boca do sambódromo para trás se forma uma espécie de fila, e a disposição das escolas segue a ordem em que vão desfilar — pelo menos no caso das alas, com exceção dos carros alegóricos, bateria e elementos específicos, como comissão de frente e mestre-sala e porta-bandeira (que acabam entrando mais pertinho da pista mesmo). Imagine que cada escola tem centenas de componentes entre os integrantes das alas, então você terá uma noção do tamanho dessa centopeia humana esparramada pelo complexo. E como cada desfile tem em torno de 65 minutos, acrescidos da dispersão e limpeza da avenida para o que vem na sequência, imagine o tempo de espera quando você chega e tem umas três escolas na frente para entrar ainda, como foi o caso naquele dia. Pelo menos deu tempo de ir ao banheiro, se hidratar, comer uma coisinha ou outra que alguém ofereceu, limpar as notificações do celular, falar com quem quiséssemos falar, e boa (parênteses: o celular pode ir contigo no desfile, mas somente por baixo da fantasia, escondido. Então eu e milhares fomos de doleira oculta, rente ao corpo). Até uns goles de cerveja pra molhar o bico surgiram sem esperar, quando um vendedor informal pego pela vigilância oficial teve de abandonar sua mercadoria, coitado, e as latinhas ficaram ao léu, na rua. Fui disciplinado quanto à repetida orientação de não exagerarmos no álcool no dia e momentos antes do desfile, mas teve gente que não, o que colocou o desempenho da ala em risco, uma grande ignorância.

Devagar fomos avançando rumo ao sambódromo, até a última curva, que nos fez passar portão adentro e aí sim, embicar numa reta enorme cujos, sei lá, cerca de 700 metros nos separavam do final da missão (considerando, além dos 520 metros de pista oficial, onde o desfile é cronometrado, a distância adicional da concentração até o início da marcação). Que visão aquela baita reta! Eu já a tinha tido quando do primeiro ensaio técnico, e me impressionado. Mas no mais importante dos dias daquele projeto de tantos meses, e expectativa pessoal de muitos anos, era de despontar a adrenalina. A passarela do samba em sua imponência concrética, todos a postos finalmente. Aliás quase todos, porque ficava um entra e sai de gente passando de vários lados, para diferentes destinos, enquanto a nossa ala já estava bunitinha, formadinha. Vale lembrar que desde os primeiros ensaios o chefe de ala já determinara as pessoas que ficariam nas primeiras fileiras (dispostas uma do lado da outra), com maior responsabilidade, por puxar o andamento e dosar a cadência das demais. Eram as pessoas mais ponta firme, assíduas nos ensaios, experientes nos desfiles, em quem ele sentia que podia confiar — especialmente os 9 da primeira fileira, nossa ‘comissão de frente’, a quem cabia, além de seguir suas orientações, ficar atento/a ao andamento da ala anterior, que vinha na nossa frente (pois não deixar buracos entre as alas é fundamental para evitar a perda de décimos no quesito evolução).

Como estávamos reluzentes no grande dia!

Quando o cronômetro partiu, já fomos na vibe e começamos a cantar e dançar, afinal já tem que entrar com tudo quando pisar na faixa de início da pista. Me lembro que em volta de nós havia dois cordões humanos, um de cada lado, nos metros finais pré-avenida. Basicamente todo mundo indo junto no samba, entre espectadores, fãs, gente vestida com fantasia, repórteres em trabalho, outros trabalhadores locais… Que emoção quando entramos pra valer, e sentimos as arquibancadas e camarotes conosco também! Eu era o extremo direito da segunda fileira, para quem olhasse a ala de frente. Então fiquei colado, praticamente, à galera de um dos lados do sambódromo, à minha esquerda. Deu pra curtir olho no olho de muitas pessoas, procurar correspondência na alegria, no sorriso aberto, braços pro alto, vibração… que trocas boas de energias! Pena que passa rápido, coisa de 30, 31 minutos de desfile o tempo que cada integrante percorre do início ao fim da pista onde vale a cronometragem. Desde que os intérpretes liderados por Wander Pires começaram a puxar o samba [colchetes: na equipe de cantores, destaque pra marcante voz feminina de Grazzi Brasil, que abriu a cantoria geral em sua primeira vez na função], a gente cantou sem parar, repetidamente, essa bela letra composta por Edegar Cirillo, Marcelo Casa Nossa, André Ricardo, Dema, Leonardo Rocha e Rodolfo Minuetto: “No Xirê do Anhembi, a Oxum mais bonita surgiu… Menininha, mãe da Bahia — Ialorixá do Brasil”:

Ora Yê Yê Oxum, vem nos abençoar
A Bela Vista hoje vai cantar
Bate cabeça, abre a roda pra saudar
Mãe Menininha do Gantois

Ê laroiê
Abra o caminho pro Vai-Vai passar
A energia que emana do Orun
Meus versos no acalanto de Olorum
E no Ayê… rufam atabaques no Xirê

A roda gira no Ilê, na força do candomblé
Vem da Bahia, o seu axé
E lá das matas o brado ecoou
Oxossi o caçador… Okê Arô

Xangô… Kaô Kabecilê
Eparrêi Oyá… Obá Xirê, Obá
Ogunhê meu Pai Ogum (repete os 3 versos)

A “Linda Estrela” está por lá
Ilumina o terreiro do Gantois
Iaô, ô Iaô
Que lindo arco íris que Oxumaré pintou

Seguindo o caminho que a mãe sempre quis
Na força, na fé e na mesma raiz
Um mar de oferendas pra te exaltar… Odô Iyá!

Eu vou, lavar a alma nas águas de oxalá
E sinto que o amor resplandeceu
O bem e o dom que Deus lhe deu

Fizemos bem a nossa parte, não comprometemos (como a apuração mostrou depois, com a Vai Vai tendo nota máxima nos quesitos que nos envolviam, como Enredo, Harmonia e Evolução). Mas o ritmo da escola, no geral, veio mais lento do início pro meio do desfile, de forma que, do meio pro final, teve que dar uma acelerada no passo pra não estourar o tempo de 65 minutos. Ufa, passou em cima! (link que encontrei da transmissão do desfile pela TV Globo, quase na íntegra: clique aqui)

Sim, eu “saí na Globo” durante o desfile! (logo acima do logotipo e do AO VIVO no cantinho da tela)

A saída foi rápida, até. Muito cansados, vemos a organização da pista se dissipar em muita gente misturada, que desfilou, que assistiu, que trabalhou no evento, que trabalhava oferecendo artigos à venda para os participantes do evento (quem não sai morrendo de sede e doido pra tomar uma água pelo menos?), etc. Inclusive gente pedindo pra doarmos peças da nossa fantasia ali mesmo. O que percebi ser comum, e vi foliões se desfazendo de adereços de fato. Afinal eles podem não servir mais pra nada, depois do seu desfile, mas podem virar dinheiro para outras pessoas, e mesmo ter seus componentes aproveitados em novas fantasias e adereços. Só que no meu caso não, meu bem: ainda tem o desfile das campeões e eu quero duas coisas: voltar e voltar pleno!

A dispersão nos dispersou naturalmente. À esquerda observei os ônibus em fila, vazios, nos esperando. Os mesmos que nos trouxeram, da escola pro sambódromo. Busquei um que estivesse entrável e ali permiti ao corpo arrefecer, descansar com a satisfação do dever cumprido. Deu para ver boa parte da Vai Vai, que veio atrás da minha ala, se despedindo da plateia no Anhembi. Até mesmo quem desfilou tava curioso, fotografando, comentando. Em determinado momento bateu o desgaste de toda aquela maratona (física e mental) e fiquei ansiando para ir embora, admito (seres humanos, somos, afinal). Tudo bem. Os primeiros ônibus foram partindo, puxando a fila, e minutos depois estávamos no Bixiga, para eu pedir o Uber pra casa, missão cumprida de fato!

Foto que fiz no busão após o desfile: as colegas foliãs curtindo um pouco mais

Mas na lembrança não acaba tão cedo. No dia seguinte já queria saber como tinha sido o desfile, o que a transmissão televisiva tinha mostrado, o que falavam da Vai Vai. Gravei a transmissão da Globo, com um carinho maior do que nunca. Emoção eu sei que transmitimos, os espectadores locais interagiram, muitos se contagiaram. Mas será que conseguimos ser tecnicamente perfeitos? Ou erramos em algo visível, notável e possivelmente registrado por algum jurado? Qual seria a colocação da escola? Por exemplo, fiquei sabendo que a avenida ficou bem molhada depois do nosso desfile, de modo que a próxima escola, a Nenê, atrasou sua entrada, aguardando a secagem, pois temia ter sua performance prejudicada por uma pista “escorregadia, com alguma substância oleosa presente”. Felizmente foi constatado que era apenas água mesmo, que caiu para fora de um dos carros da Vai Vai bem mais do que deveria. Não houve perda de pontos por isso. Infelizmente houve por outros descuidos (que eu não sei exatamente de quem foram, e agora nem interessa), como a apuração revelaria.

A farra no dia da apuração

A apuração do carnaval merece um parágrafo à parte. Depois do desfile, é o momento mais decisivo e esperado do ano no carnaval profissional e competitivo. Decisivo pelo que vai revelar, resultado de julgamentos durante as noites das apresentações das escolas. A expectativa é tanta, a tensão uma constante, que acaba sendo um dos eventos mais esperados até por quem não participa dos desfiles nem da vida das escolas, vide a imensa repercussão por quem acompanha ao vivo na TV, Internet (especialmente nos fóruns das redes sociais) ou rádio. Os representantes das agremiações que estão acompanhando no local da apuração (o sambódromo) vão ficando nervosos, as galeras que se amontoam nas quadras pra seguir pela TV se manifestam ki nem torcida organizada em jogo decisivo de futebol. Como a galerinha amiga da ala, que acabou se aproximando e até criando um grupo paralelo de WhatsApp pra interagir, tava toda interessada em assistir-torcendo (ou torcer-assistindo) a transmissão, combinamos de juntar na casa de uma das integrantes pra vermos juntos. Nos bandeamos pra lá, fizemos churrasco, clima de festa, e após alguns momentos de nervosismo com certas notas, até que ficamos satisfeitos com o terceiro lugar (e as avaliações posteriores dos colegas e especialmente do chefe da ala, inclusive em cima das justificativas dos jurados que ficam disponíveis pra quem quiser ver depois da apuração).

O cartaz do samba enredo

Eu particularmente fiquei foi muito feliz por poder voltar ao Anhembi na sexta-feira, para novo desfile, agora com a pecha de ser um dos vencedores, pois os cinco primeiros do grupo de elite (mais os dois primeiros do acesso) gozam desse privilégio. Tanto investimento, de dinheiro, tempo, energia e expectativa, para um só desfile seria muito pouco, né? E lá fomos nós, agora muito mais leves, afinal seria um dia apenas de festa, do carnaval da diversão, sem avaliações e notas. Acabou sendo cansativo pra mim porque trabalhei normalmente quinta e sexta, aí sexta saí meio corrido do tramps, porque tinha de ir pra casa, montar a fantasia que eu já sabia que era um processo, pedir o carro pra ir até a quadra, aguardar o “bonde” pro sambódromo, etc, etc. Mas beleza, tava ótimo, era onde eu queria chegar. Foi muito mais suave, deu pra interagir com o público ainda mais, sem aquela preocupação com a disciplina do compasso do primeiro dia. Teve gente na plateia me pedindo adereços e pedaços da fantasia ainda na pista! Ou na dispersão. Porém eu tava muito apegado ao meu Logunedé ainda, para sair desmanchando-o antes mesmo de voltar pra casa. Ah, deixa eu curtir mais um pouco. Tem espaço pra guardar em casa. E muito o que reviver na memória. O primeiro desfile carnavalesco o verdadeiro fã nunca esquece!

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Bruno Pessa

Jornalista, doutorando em Comunic. Social, especialista em Jorn. Literário, youtuber de araque e outros quetais. Mais: naotevejeito.blogspot.com